Abdon Marinho é advogado.

VIVEMOS tempos em que as pessoas são movidas mais por paixões que por princípios. Aquela coisa, se fulano é meu amigo não tem defeitos, ainda que cometa os maiores absurdos; se é meu inimigo ainda que não tenha defeitos, não faça nada de errado, não se consegue enxergar qualquer mérito e a ele devem ser destinados os piores castigos, ainda que para isso, se viole a lei.

No furor de desenfreadas paixões, acabam por esquecer o real sentido das coisas; de analisar com racionalidade e, pior, acabam por se vestirem de justiceiros impiedosos.

Outro dia vi – com pesar –, uma tentativa de linchamento moral praticada contra um dos mais lúcidos e corretos (senão o mais para ambas) ministros do Supremo Tribunal Federal – STF, o ministro Celso de Mello, tudo porque ele deferiu uma liminar para que um cidadão já condenado em segunda instância fosse solto e aguardasse o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (soube que também o ministro-presidente Ricardo Lewandowski, acaba de fazer o mesmo).

O caso, em que o ministro Celso de Melo soltou o condenado, vamos reconhecer, é deveras escabroso: o condenado, segundo apurou a instrução criminal, matou o sócio, escondeu o corpo e depois, ainda, foi festejar numa boate. Apesar de condenado já em segunda instância o ministro determinou que aguarde o trânsito em julgado do processo.

Embora, à luz do caso concreto, tenha parecido que o ministro agiu de forma injusta ou a fazer menoscabo da justiça, a incentivar a cultura da impunidade, ele agiu dentro do que entendemos como princípio. Um julgador, muito difere de um alfaiate. Ele, diferente daquele, não pode aplicar a lei conforme o figurino do freguês. Se assim o fosse seria muito pior.

O ministro votou contra a tese da maioria dos seus colegas que cunharam, conforme o caso, em processo específico, a possibilidade de cumprimento da pena já a partir da condenação em segunda instância. O entendimento minoritário do ministro tem por fundamento o dispositivo constitucional do artigo 5º: “LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E, ainda, conforme declarou logo após o julgamento do colegiado, o fato, de 25% (vinte e cinco por) da matéria criminal que chega ao Supremo Tribunal Federal, através de recurso próprio, ser reformada.

Logo que o Supremo decidiu a matéria (possibilidade de cumprimento de pena a partir do julgamento em segundo grau) escrevi um texto discordando da decisão. Fundava o texto não apenas no mandamento constitucional já referido, mas, sobretudo, na entrevista do decano do STF. Numa nação onde a injustiça é a regra recebi diversos questionamentos. Alguns chegaram a dizer que apenas uma ínfima quantidade de pessoas recorriam da decisão de segundo grau, uma quantidade ainda menor tinha êxito nos tribunais superiores e, uma quantidade menor ainda conseguia chegar ao STF, daí a necessidade, no combate da impunidade, de se decretar de imediato e sem o exame de quaisquer outras circunstâncias. Para os defensores da tese vitoriosa no Supremo parece justo que a ínfima quantidade de pessoas que têm suas penas revistas ou sua sentença revogada cumpram pena (ainda que inocentes) pelo tempo que o processo trâmite e seja revisto pelas instâncias superiores. Afinal, argumentam, são poucos, quase ninguém, então que paguem em nome da sociedade cansada de tanta violência e impunidade.

Embora não discorde da necessidade de se combater a impunidade – mesmo porque, entendo que ela está na raiz de todos os males –, sou divergente quanto à assertiva de a ínfima quantidade de recursos que chegam aos tribunais superiores justificaria o cumprimento antecipado, antes do trânsito em julgado – embora concordando com a necessidade de se dar um basta na infinidade de recursos protelatórios.

Entendo que o encarceramento, ainda de um único inocente, justificaria maiores cautelas nesta questão. A liberdade é o bem mais precioso que o ser humano possui. Ninguém é capaz de devolver um dia perdido no cárcere por um inocente.

Mas, as razões do meu pensar não funda-se, unicamente, no estrito cumprimento do mandamento constitucional, ou no levantamento exposto pelo decano do STF sobre o número de reformas na matéria penal que chega ao tribunal. Funda-se, sobretudo, no conhecimento que temos sobre o funcionamento da justiça de segundo grau, não apenas no Maranhão, mas no Brasil inteiro.

Vivemos num país onde apenas os ingênuos ou tolos acreditam na justiça.

A desconfiança da sociedade tem uma razão palpável de ser. Ao longo dos anos temos convivido com a injustiça, com a dureza da lei imposta aos menos favorecidos e com os interesses políticos ou pessoais se sobrepondo à lei. Quem não sabe disso? Quem não sabe ou, ao menos, não desconfia, do que ocorre diante de tantas decisões rumorosas? Quantas vezes – a exemplo do que ocorria na Roma dos Césares – não assistimos à condenação de um “ladrãozinho de galinhas”, e no mesmo dia se absolver quem roubou milhões, conforme já denunciava o Padre Antônio Vieira há três séculos?

Se o Judiciário, de norte a sul do país, suscita dúvidas e inquietações, outras instituições não ficam muito atrás. Outro dia – não faz muito tempo –, uma promotora da capital denunciou que estaria sendo vítima de assédio por parte dos seus superiores. Segundo ela, a perseguição tinha a ver com o trabalho que fazia, inclusive com denúncias contra colegas que teriam cometido delitos de gravidade ímpar.

Vejam bem o que está dito: a promotora acusa superiores de persegui-la porque ela (promotora) estaria apurando (denunciando) crimes cometidos por outros colegas (promotores), crimes graves, segundo acentuou.

As denúncias parecem tão banais que ninguém atentou para sua gravidade.

O Ministério Público é, nos termos da Constituição, instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Mais, nos termos do artigo 129 do mesmo diploma, compete-lhe, privadamente a promoção da ação penal pública, na forma da lei, zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, além de tantos outros.

Como é possível que uma denúncia de tamanha gravidade não escandalize a sociedade, os poderes públicos? Como é aceitável que ganhe esse ar de naturalidade?

Noutras palavras, a promotora disse que aquele possuidor do poder acusador faz uso do mesmo conforme a conveniência, conforme quem seja e que tenha cometido o delito. É isso que está dito.

Ora, quem faz vistas grossas aos culpados – segundo a promotora, de crimes graves –, o que impede de acusar e pedir condenação de inocentes conforme a conveniência? Que ajam motivados por paixões ou interesses escusos? Nada.

As paixões têm esse viés. Quem age motivado por elas perde a racionalidade e o senso do justo, aplica a lei como um alfaiate, moldando-a ao corpo do modelo.

Nos dias de hoje quem age com base em princípios, quem expõe suas ideias fundadas neles recebe ácidas críticas, recebe patrulhamento. Lembro de determinada vez em que disse ser favorável a construção dos hospitais e estradas ligando as sedes dos municípios. Dizia não entrar no mérito, se estavam desviando ou não os recursos, mas sim, que eram obras importantes para as populações daqueles municípios. Recebi criticas severas. Que as repeli com veemência.

Em dias mais atuais fui criticado por discordar do pedido de prisão e monitoramento feito pelo procurador-geral da República contra o ex-presidente Sarney e outros senadores. Entendi e entendo que não havia motivo justificado para tal pedido, fundado, basicamente, em conversas gravadas clandestinamente por um “delator preventivo”. O relator do processo no STF recusou a medida extremada. Outra vez recebi críticas.

Cada vez mais, as pessoas sentem dificuldades em conviver com princípios, estão enredadas em suas paixões, quase sempre (senão sempre) irracionais.


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